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segunda-feira, 28 de junho de 2010

Coisas da Noite

A crônica abaixo foi escrita na década de 1990 e é a primeira de uma série de impressões sobre o homem urbano. O tom prentencioso lembra o início da vida adulta, o empenho narcisista, levemente heróico e sobejamente egocêntrico. Ainda assim, uma imagem da noite que quis resgatar. Espero que curtam:


É no acalanto da noite, naquele momento tênue de desconsolado breu, que os mistérios revoltam-se em  prateleiras distantes e, como livros a vagar por entre névoas esmaecidas pelo néon das ruas, atingem o sono alheio.

Foi uma dessas comunicações metafísicas a que se fez matéria em um ruído claro, efetivamente concreto e, dentro de sua continua reticência, intrigante.

Coloco os chinelos e escorrego lânguido e moribundo pelo corredor, escada e hall até avistar a soleira da porta do jardim.

Faço crer que à espera deste insone terráqueo estão os que aqui chegam para investigar a tola existência do planeta azul. Como reagir eu a pergunta, clichê de filme B americano, “Como vivem os terráqueos? Levem-nos a seu chefe?” Não creio que meu chefe saiba como vivemos, reflito que talvez se resignasse com a constatação de não saber responder a tais criaturas.

O fato é que freqüentemente nos vemos face a face com perguntas que ao longo de nossa existência foram discutidas, assumidas, resolvidas ou não, e internalizadas, penduradas na parede sem sol de nosso raciocínio, feito aquele quadro que não gostamos o suficiente para por na sala nem detestamos o suficiente para jogarmos no lixo. São perguntas que ao embolorar pelo esquecimento soltam o odor de idéias vencidas, principalmente quando enfrentam a luz lançada por qualquer rebento desavisado que sem saber da heresia da curiosidade remove o quadro dali.

“Sim, sim, somos da terra. Não, não, o chefe não mora aqui.” Poderia esboçar a discussão sobre a existência inerte da anarquia do pensamento e da atitude dos da Terra frente a onipresença no universo, mas pela dificuldade de raciocínio e no improvável da realidade, varro da mente a idéia alienígena. Soleira em noite alta, luzes da noite sobre meu couro cabeludo, lua a pino e olhar distante. Nada vejo e não saiba estar ali, por entre árvores, postes de iluminação e asfalto esburacado de cidade grande em bairro de classe média decadente. Busco restos de lucidez na revolta por me ver desperto a tal hora da noite e como que pisando de volta à realidade tento conectar o silêncio agora presente a possível  certeza de estar sendo observado por alguém.

É curioso como estar desperto em silêncios noturnos pode levar ao pesadelo do medo eminente. A incógnita de meu raciocínio parece estar atrás das árvores do jardim, concluo obtuso em olhar tão trêmulo quanto o frio que a fragilidade da ação supõe. O vento ressona um silvo leve e inspira o silêncio a lembrar-me fIlmes de ficção, suspense e morte súbita. Sou agora o habitante da cidade veloz que na calada da noite é morto a tiros por marginal em fuga, deixa filhos, mulher e cachorro. Tragédia urbana na periferia.

Ainda preferindo a história dos alienígenas, avanço ao jardim, como um Quixote frente ao moinho de vento, avançando frente às garras impenetráveis do desconhecido. Levo comigo a certeza de que deveria ter entrado no caratê junto com minha mulher e que a vassoura que carrego nas mãos não é uma lança que ferirá o coração de meu rival.

O que poderia querer esse marginal, uma TV, um vídeo cassete? É engraçado que nunca jogue em jogos de azar, mas sempre tenha o azar de perder em jogos com a sorte…Retorno para dentro. Já não tão lânguido e com o sentimento rotineiro de que me atraso ao escapar de meu destino, ouço o silvo repetido do pretenso larápio. Ladrões não silvam. São Silvas que correm, não silvos que assustam. Sinto-me vencido pelas incertezas dessa conjectura e demovo-me também da idéia do ladrão. Olho indefeso para a vassoura e da grua cinematográfica em que me projeto em plano longo e aberto, vejo-me só no jardim próximo à rua em noite aberta com rua deserta, céu claro e sério gosto de noite no ar.

Chinelos no chão frio, com o reticente som de seu arrastar amuado, cortam a visão panorâmica de um cineasta Holiwoodiano em noites tropicais.

Talvez o som noturno a me tirar da cama tenha sido filho bastardo da revolta contra a noite curta a ser abortada pela labuta matinal. Há ainda o consolo de um abraço forte em quem amamos, um beijo soprado ao filho, que pela realidade de meus medos viaja nos sonhos felizes de sua infância. Chama queimando forte, como fogo que recém aceso só tende a ganhar força e não pode nunca se imaginar brasa.

Ah, as brasas de nossos sonhos…, são, no correr dos anos, o embalar de dias amenos e pacatos, que em suas cores pastéis trazem a névoa e todas as indefinições que a existência social, pacífica e urbana, caracteriza sob o conceito de vida normal. Sou normal e mal vejo o que há de normal nisso.

Entre as brasas que se extinguem e nas lágrimas que no caminho do quarto derramo em soleiras passadas, escuto o som, cada vez mais claro, da realidade. O ladrão alienígena que me rouba o sonho é na verdade um morcego da noite que habita meu quintal, a silvar para a lua como vampiro moderno, vegetariano em busca de jabuticabas.

Já não me assusto e, certo de que era ele o vilão de meu mistério, riu menino pela analogia fictícia do vampiro que rouba, no sangue de nossa vida urbana, o sonho de uma realidade rural. Volto a dormir e abraçado a companheira fiel de batalhas concretas, à doce Dulcinéia de meus tempos de fogo alto,  spero acordar com a resto de sangue que corre em mim, para sonhar de novo em noites futuras, com mundos distantes, que arrancados da pinacoteca nobre de nossa rotina apática resgatem no menino o fogaréu da imaginação e o mistério doce que somente a Lua, com sua soberania mutante, sabe compactuar com seus súditos.

Original de 3 de abril de 1996.

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