Bem vindos a meu Blog

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A Forja do Amor

O texto abaixo é base para um roteiro que prometo postar no futuro. Brinca ccom a temporalidade narrativa, transgredindo os limites do tempo convidando o leitor a seguir o esvair do tempo em seu continuum.



Era evidente que a barra de ferro que ali víamos não era mero destroço ou detrito esquecido pelo homem da conservação. Tinha pouco mais de 20 centímetros e se dava a função simples de cunhar na terra fofa espaço para que meu avô ali colocasse uma nova flor em memória de sua amada.

Todos os dias aquela lápide, com a foto desbotada e o dourado da moldura já gasto de repetidos afagos, é choraminga companheira de alusivas tardes, ajudando a iludir em foto de época distante, de beleza altiva e sentimento em broto, a insofismável ausência.

Foram casados sessenta anos e, se embora a rispidez de um relacionamento espanhol com gritos e  constantemente a beira de um ataque nervos, no estilo grosso e curto dos homens da terra seja característica das familias de imigrantes ibéricos, ele, esse homem franzino de 92 anos, cujos olhos tênues de um azul ausente, respiram a memória de dias passados, em sua lucidez ensimesmada traz a têmpera dos que sobrevivem à história.

Há um cacho de bananas em seu quarto e naquela noite um frio insiste em entrar pelas fendas mal disfarçadas do que realisticamente chamaríamos de cortiço.

Dona Maria bate na porta, “Seu Juan, tá querendo um cobertor a mais ?”

“Não”. A fala é seca, dos que não dominam a língua, mas dominam a dor.

Tem a esposa na terra distante e suas filhas longe dos olhos. O piso de cimento tingido com corante vermelho pouco tem para, em sua vermelhidão, fazê-lo esquecer a pátria, os touros, os prados e por entre olivas e castanhas, o avental preto a contrastar com a branca pele e loiro pelo de sua companheira de luta.

Já se passavam 2 anos que a guerra civil o impusera como imigrante. “Trata-se de política ?”, perguntaram-lhe, “Não”, cabisbaixo contesta.

O olhar espoliado aflora e reflete que fora o desejo de paz e vida serena, que o havia lançado à aventura do mar, ao mistério dos navios e a distância dilacerante na saudade dos entes queridos.

Mal sabia que a guerra do novo mundo o deixaria ali, cacho de bananas verdes ao pé, triste marco com o gosto amargo de uma tropicalidade pobre.

Havia porém amigos, solidários, como são todos os que sofrem. Quando estamos em desvantagem nos unimos, somos poucos, mas um pouco mais fortes, se somos poucos, juntos.

Bananas maduras em uma fruteira de vime. A primeira mesa, fórmica vermelha com padrão rajado em preto, cadeiras de corvim e o sorriso das filhas.

Duas meninas a endoçar com as feições de encantamento, o fútil orgulho da ascensão social.

O sorriso de uma mulher feliz é balsamo ao apaixonado. “Éres un sueñador Juan?” “No” responde monossílabo, mas aqui tenho minhas filhas, dizia radiante o olhar, que confirmava como que estendendo em seu facho azul celeste os braços a apresentar aos antigos companheiros de cortiço os frutos de seu progresso.

Há pouco mais de um ano reunidos e já todos trabalhavam. A guerra agora era outra. Suavam nos poros em uma indústria insipiente porém promissora, que compartilhava com os que ali chegavam e doavam quinhão de labuta, o futuro na nova terra.

Não estava mais só. Havia a mulher.

O futuro começa na voz de uma mulher…

O mundo se move junto com as mulheres, o seduzir que esquenta nossos motores.

A força de mover o mundo por um suspiro de prazer.

O que seria de Don Quixote sem sua Dulcinéia?

Cervantes deve ter tido sua Dulcineia, como tinha Juan.

Construia rapidamente uma pequena casa, tinha lá fora uma filha casada, que no automóvel de classe média, celebrava a raça em domingos no campo, em piqueniques com vinho e castanholas.

Em breve seria avô, e o encanto da vida surgia novo e desafiador a cada esquina, “uma banana, após a outra”.

A vida pode ser uma experiência com recompensas e frugais momentos de contemplação.

Juan e seu terreno.

“Mira, acá pondré los cafés?” Entre mato e arbustos impertinentes achava o sonho, tecido na forma bruta de um âmbar vegetal, preservando em seu estado sólido o que nem a mais duradoura das fotos capturaria em realidade.

Tijolos e a casa de suas filhas.

“Vô, prá que o senhor guarda tantas tábuas e ferros?”,perguntei eu àquele senhor, lá pelos meus 7 anos, “A mente nos dá mostras infinitas do potencial das coisas. Deve-se ter sempre em mente as possibilidades do que vemos pela rua.”

Coisas de tempos de guerra. Assim eram os dias.

E eu que por vezes duvido o tempo e seus truques espaciais acho que não estamos em guerra. Somos guerreiros de faz de conta, cavaleiros e crianças brincando com paus, pedras e ferros.

Ferros simples e insólitos como esse, que perene em minhas mãos resiste ao ataque impiedoso de ferrugens e ácidos úricos. Forjado certamente há mais de 30 anos, trazido de um qualquer resto de manufatura industrial, ali, a afofar a terra que cobre o corpo de minha avó. Em sua ferrosidade latente a forjar um gesto de amor.

Reflete em um botão de flor selecionado em cor e grau de verdura o amor à companheira, que o impulsionou e que na inércia de um vento, que se desfaz em brisa, em sopro e em ar, jubila a vida com desejo etéreo de seguir amando, como se o vento, que vence chamas e assusta águas não pudesse causar danos ao calor dos sentimentos .

“Amor mio, compañera de mi vida, guardote en mi para encontrarte todos los dias”, canta o amante, o homem, a criança, que postada a observar o descenso final daquele corpo, mesmo trêmulo e frágil, com honrada superação e orgulho, por entre as lágrimas da dor premente de filhos e netos, inunda o ar com notas roucas de sabedoria e emoção floral.

É um dia frio, o outono visceral de nossas vidas se fez hoje. Aqui estou eu a fitar um pedaço de metal por entre flores brancas e uma grama mirrada a contornar a placa de latão com a inscrição crua e impessoal de um nome e duas datas.

A realidade da cena convence-me que há dois anos minha avó se foi.

Resta-me assentir ao ciclo da vida.

Clamo, porém, enquanto hesito em não chorar, a pureza deste amor, o significado forte e pessoal daquela barra de ferro.

Trata-se de lição maior, razão suficiente para seguir adiante e contar ao mundo, em verso prosa e oração de fé.

Ele a ama.

Amamos todos o amor.

Interno, calado ou aberto e polifônico,

forjado em ouro, ferro ou latão polido,

para todo sempre,

Amém.


cbp
26/04/96

Nenhum comentário:

Postar um comentário